Como pode uma história, que não é nossa, ser tão lembrada?

Por Raquel Silva da Fonseca[1]

A imagem televisiva da catástrofe do 11 de setembro de 2001 tem o poder de ofuscar outras catástrofes piores do que a tragédia americana. Em texto recente, Noam Chomsky[2] pergunta-se se o 11 de setembro não poderia ter sido pior, como por exemplo, a Casa Branca ter sido destruída por um bombardeio, o assassinato de um presidente eleito democraticamente[3] seguido por uma ditadura de tipo fascista que acarretaria em milhares de mortos e outros milhares de refugiados. Essa provocação de Chomsky é feita para mostra a diferença entre as duas datas, onde o primeiro 11/09 teria motivos suficientes para uma retaliação internacional e o segundo, também justificado em termos de busca pela justiça, acabou resultando em uma série de guerras e intervenções que foram condenadas no cenário internacional. A segunda grande provocação do texto de Chomsky é que o primeiro 11/09 “não teria mudado o mundo”.
A história do tempo recente ou mesmo a história do “imediato” não nos permite ver com clareza a extensão do 11/09. É comum entre cientistas sociais afirmar que esse evento “ainda não acabou”. Como com outras catástrofes, foi gerada uma redoma de vidro em volta da cena das torres caindo, uma experiência traumática que não pode ser revivida em sua essência e que não pode ser completamente relatada. O impacto da imagem das torres, televisionada para o mundo em tempo real, transformou o 11/09 em uma tragédia internacional, vivida além do solo americano e de diferentes maneiras.
O clichê entre nós, brasileiros, dez anos depois da experiência traumática do outro, permanece o mesmo: todos nós lembramos onde estávamos e o que fazíamos quando os EUA foram atacados. E praticamente todos nós tínhamos a mesma frase em mente: “É guerra”.
Este texto, reflexivo apenas, pretende lançar a seguinte questão: Qual é o impacto dessa memória em nossa história recente? Qual será o impacto das sociedades telespectadoras desse episódio? E, o mais importante, por que nos lembramos da tragédia do outro quando mal nos lembramos das nossas hecatombes?
Hoje, o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda parece pairar sobre a cabeça dos brasileiros como um fantasma que repete sempre a mesma canção. Somos o povo da felicidade, da festa, da cordialidade, do respeito ao próximo, de braços abertos para o mundo. A história do Brasil do autoritarismo, do Estado Novo, de tentativas golpistas, da Ditadura Civil-Militar, da corrupção, da tortura, não parece abalar em nada essa imagem que ainda temos da nossa sociedade. O dia 31 de março é ainda hoje celebrado com festa por segmentos da sociedade civil e militar, e nossa cordialidade parece não nos permitir nos questionar “por quê?”. As mortes dos americanos do 11/09 são mais lembradas do que as mortes provocadas pelo estado de exceção brasileiro. Os heróis americanos, bombeiros, policiais e pessoas que se ajudaram nos momentos de desespero são mais heróis do que a nossa população que sofre diariamente coisas inimagináveis. Se sairmos na rua e perguntarmos para as pessoas quem elas consideram nossos heróis nacionais terão pelo menos três respostas: “Pelé”, “Airton Senna” e “Ronaldo” [4].
O 11/09 pode ser lido como mais uma marca da falta de memória que nós temos de nossa própria história. A tragédia do outro supera a nossa, como se nunca tivéssemos vivido experiências tão traumáticas como a dos americanos. Estou longe de afirmar que o trauma social dos americanos seja “menor”, que ele não exista e que se perpetue diariamente em sua sociedade. O que estou afirmando é: devemos começar a refletir sobre os traumas vividos pela nossa sociedade, que se perpetuam diariamente, e o esquecimento constante do nosso “eu” social.
Para concluir, deixo uma nova pergunta, sobre um outro trauma social televisionado em tempo real: Onde você estava quando o Batalhão de Operações Especiais invadiu um grupo de favelas conhecidas como Complexo do Alemão?



[1] Licenciada e bacharel em História pela PUCRS. Mestranda pela mesma universidade.

[2]    O texto em inglês pode ser lido no blog: http://english.aljazeera.net/indepth/opinion/2011/09/20119775453842191.html .Estamos trabalhando na tradução desse artigo para publicá-lo no blog Oficina do Historiador.

[3]    Lembramos que recentemente o corpo de Salvador Allende foi exumado pela terceira vez, por uma ordem da justiça chilena, para uma nova autópsia para confirmar a causa da morte do Presidente. A investigação confirma que a causa da morte foi suicídio. Entretanto, é ainda debatido pelas ciências humanas que, mesmo Allende tendo provocado sua morte, ela não teria sido feita se não fossem as circunstâncias impostas pelo golpe de 11 de setembro de 1973.
[4]    Faço uma ressalva: estou apontando que temos o costume de considerar apenas os atletas como heróis nacionais, principalmente quando estes ganham destaque internacional. Não estou fazendo juízo de valor com relação a escolha, só penso ser problemático que atletas são os mais lembrados em perguntas desse gênero. Outro nome que com certeza estaria contemplado na lista seria “Getúlio Vargas”, o “pai dos trabalhadores” e ditador.

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